segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

A passagem;


A passagem

O dia estava nublado e na pequena capelinha do cemitério dona Maria velava pelo marido que havia morrido de pneumonia.
-Fique triste não dona Maria, pois Deus sabe o que faz e Antônio recebeu o descanso merecido- disse-lhe Clotilde em tom de pesar.
Noutro canto da capelinha de semblante fechado seu Quitério o dono do bar, olhava pensativo para o corpo estendido sobre a mesa de mármore preocupado com quem pagaria a dívida que o defunto deixara.
Do lado de fora da capelinha dois homens conversavam a respeito da morte de Antônio:
-É sempre assim depois que morre vira santo não é mesmo Osvaldo?
-Verdade José. Antônio não saia do bar, bebia feito uma esponja, traia a mulher e agora que morreu vira santo.
O velório atravessava a noite enquanto os presentes teciam os comentários de tudo que é tipo e raras eram as lembranças boas sobre o falecido.
Antônio que em espírito permanecia na capelinha ouvia atento e decepcionado cada comentário que faziam a seu respeito.
Seu guia que o acompanhava na derradeira passagem, compadecido de sua dor procurou lhe consolar:
-Não se entristeça Antônio com esses fúteis comentários. Se já falavam mal de você em vida porque deixariam de falar na hora de sua morte? Isso é muito mais comum do que você imagina. Aliás, morrer não é o problema. Problema mesmo é o pós-morte, ou seja, encarar a verdade do outro lado da vida.
“Você morreu já velho e de certo modo se conformou com a situação”. Mas nem sempre é assim. Tem gente que morre e não aceita, vive revoltado e quer voltar de qualquer jeito o que é impossível. Muitos morrem na ignorância e por medo do desconhecido ficam presos ao corpo já sem vida. Sem falar nas pendências emocionais que levam os recém-defuntos a perturbações de toda sorte. E os que deixam o corpo ainda apegado às coisas terrenas? Como você pode perceber o problema da morte não está na própria morte e sim na falta de entendimento do processo da inevitável passagem.
Apesar de triste Antônio senti-se um pouco melhor com as palavras do guia. Sabia que a morte era uma viagem sem volta e que aceitar e procurar entender a vida do outro lado da vida era o melhor a se fazer. Tinha vontade de dizer a todos que estava vivo e que a morte não era o fim, porém, sabia que suas palavras seriam em vão.
Seu guia o segurou carinhosamente pelo braço e lhe disse em seguida:
-Vamos Antônio, está na hora de seguir viagem.
Antônio aproximou-se de dona Maria e a enlaçou num comovido abraço de despedida.  Depois acompanhado de seu guia seguiu na luz de um destino desconhecido que o aguardava do outro lado da vida.


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